Seria Crivella um neochaguista?
Pergunte a um paulista, que costuma tratar o carioca com certa emulação, o que acha do sucesso, em certas praias deste balneário, da crítica que Marcelo Crivella faz à administração Paes por só se preocupar com obras e se “esquecer das pessoas”. A primeira reação dos “mano” seria indagar: “Pô, meu, como ser contra obras?” Depois, emendariam com algum deboche, tipo: se carioca fosse peru, escolheria como festa preferida o Natal, quando a ave é submetida ao martírio.
O prefeito que está indo embora, insisto, fez uma revolução por minuto no Rio. Enquanto Fernando Haddad, moço de fino trato, debatia-se com o fechamento da Av. Paulista para carros no domingo, ou na limitação da velocidade do trânsito nas marginais do Tietê, Eduardo Paes tocava obras importantes por aqui, como os BRTs e VLTs e a recuperação da Zona Portuária, sem falar em quase 500 escolas e clínicas da família. A prefeitura do Rio investiu, no ano passado, 19% do Orçamento, o dobro da taxa de São Paulo (9,1%).
Mas, num clima nacional de nojo e asco com a atividade política que resultou numa enxurrada de brancos e nulos, nosso alcaide falante — e mais ainda seu insosso candidato — não soube convencer as pessoas de que obras geram renda e emprego. Paes também não soube explicar que Rio e Estado do Rio, apesar do mesmo nome e sob a administração do mesmo partido, o fedorento PMDB, viviam realidades distintas. O samba do crioulo doido fez com que, nesta eleição, se discutisse muito mais segurança pública, cuja responsabilidade maior é de Pezão e Temer (não necessariamente nessa ordem), do que, por exemplo, os problemas das favelas.
Na verdade, cuidar das pessoas, como insiste a propaganda de Crivella, é tudo de bom, tarefa nº 1 de qualquer homem público. Só que há formas e formas de se fazer isso. Há peixe e vara de pescar. Esse discurso, aliado à ligação dele com a Universal, que, como todas as igrejas, tem a compaixão e a caridade como mantras, permite supor que um eventual governo Crivella flertaria com o assistencialismo e o clientelismo. Se eu estiver certo, ele, o candidato de fala pastoral, está mais perto do “chaguismo” do que do “lacerdismo” ou do “brizolismo”. Como lembra Marly Motta, nossa historiadora maior da política fluminense, os governos Carlos Lacerda (1960-65), Chagas Freitas (1971-75) e Leonel Brizola (1983-87; 1991-95) “tornaram-se referência constante para os candidatos e os eleitores da cidade do Rio, os quais buscavam identificações com um conjunto de realizações no campo social e econômico, e com o compartilhamento de valores e crenças”.
Veja esse antigo projeto do Cimento Social do Crivella. A ideia é generosa: ajudar as famílias a concluírem suas casas com estabilidade estrutural e condições sanitárias, além de velar pelo entorno. Mas isso é um pingo num oceano, embora, para quem foi beneficiado, seja um presente de Deus. Esse tipo de ação, que estreita as relações do político com o eleitorado, que por sua vez se torna credor de voto ao benfeitor, foi notável durante o chaguismo e ficou conhecido no mundo da sociologia como a “política da bica d’água”, a de paliativos. Imagina o sucesso que era a instalação de uma bica nos anos 1970, quando a maioria das favelas ainda não tinha água encanada, e cujo drama Joaquim Antônio Candeias Junior (1923-2009) imortalizou nos versos: “Lata d’água na cabeça/Lá vai Maria, lá vai Maria/Sobe o morro e não se cansa/Pela mão leva a criança/Lá vai Maria.”
Marly Motta reconhece que a tentação teórica de aproximar o crivellismo do chaguismo é grande. “Mas há poréns: Chagas era um chefe com longa tradição na política carioca, senhor inconteste da máquina política que ajudou a montar na cidade. Nunca passou, no entanto, pelo teste das urnas em eleição direta para o Executivo.” Faz sentido.
(Artigo publicado na edição de 21/10/2016)